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Sobre jogos de dominó

5 de Janeiro de 2015

Passei o fim de semana longe de casa e em casa ao mesmo tempo. Explico: viajei com pessoas queridas. A primeira foi com amigos de longa data. A segunda, com a família. Todos muito amados. Fomos à praia, comemos churrasco, jogamos dominó. Mesmo distante geograficamente, encontramos nosso lar quando estamos juntos de pessoas com quem nos sentimos à vontade, né? Isso é muito bom. Adoro gente querida quando se junta. E foi assim.

E como estava em casa, vivi e senti coisas que vivo e sinto todo dia vivendo meu cotidiano de “mulher doutoranda que mora junto com companheiro médico”. Em vários momentos durante a viagem, que no todo durou quase uma semana, me deparei com situações que expõem relações, para mim, complicadas no que tange ao tema machismo/sexismo (há quem prefira desassociar as coisas para ver se descem mais suaves… *suspiro*). Não discuti em *quase* nenhuma. Das mais sutis às mais tensas. Respirei fundo, contei até 10, fiz cara de blasée e tentei fazer com que meu feriadão de réveillon fosse mais leve. Mas o troço sempre fica pesando aqui dentro, entalado.

É engraçado que a maioria das questões que me tocam são aquelas que passam despercebidas por quase todo mundo, aquelas que não estão na discussão clara sobre o tema, mas nas atitudes feitas de modo despreocupado, habitualmente. Isso não acontece porque eu me acho muito inteligente e nem porque eu sou muito noiada, mas porque quando a gente mergulha nos estudos do feminismo e fica mais sensível a questões de direitos humanos como um todo, a gente dá adeus a uma certa paz mesmo. Basta parar cinco minutos em qualquer lugar, observar e constatar que as coisas não fazem sentido. E nada mais fácil do que ver homens cumprindo “papel de homem” e mulheres exercendo “papel de mulher”. Afinal, comida de fogão quem faz é mulher, mas o churrascão quem comanda é o homem. Enfim, não vou ficar aqui citando e nem levantar os problemas que estão por trás dessas divisões “inofensivas” neste texto…

Voltemos às viagens. Obviamente que, como feminista assumida, eu sofro provocações propositadas a respeito de temas de gênero. Alguém que solta uma “gracinha” (daquelas que não têm graça nenhuma) e diz logo em seguida: “eita, Bellinha vai me bater”. Fingi que não ouvi algumas. Me parece que sempre tem alguém querendo levantar o tema polemicamente. Muitas vezes estão querendo mesmo conversar sobre certas questões. Outras vezes é apenas para ver minha reação (como fazer “piada de português” para um português e testar se ele se importa em ser chamado de burro ou se ele é “um cara legal com senso de humor” que vai ser “esperto” e entrar na onda, deixar o bullying passar, porque, se ele se chatear ou se mostrar chateado, sofrerá para sempre). Interessante. Eu preferi observar. Fingir que não era comigo. Nem reagir mal e nem entrar na onda.

Não é que eu tenha me cansado de falar, não. Mas é preciso estratégias mais eficientes do que murro em ponto de faca para lutar pelo feminismo. Não dá para ter conversas profundas e elaboradas com quem não tem um percurso crítico e, ao menos, disposição para desconstruir. E, sinceramente, muitas vezes quem não tem disposição sou eu. Vou continuar provocando de outras formas, soltando perguntas, reflexões, ou até xingando mesmo, às vezes, porque não sou obrigada. Mas conversas intensas, me desculpem, só quando eu senti que vai levar a algum lugar legal ou quando eu não me sentir tão sozinha defendendo certos argumentos e tendo que engolir outros. Quem quer discutir porque os dualismos minam a possibilidade de diversidade e são a chave para o desenvolvimento de relações de poder que criam o padrão e, logo, o desviante? Haja pós-estruturalismo na veia. Não dá. Ainda estamos longes de uma sociedade que, ao menos, entenda as bases do que defende a teoria queer. É triste.

Enfim, entre as palhaçadinhas provocativas (palhaçadinhas, sim, porque tem aquele tipo de provocação que é interessada, e dessas eu até gosto, mas tem aquelas outras que são apenas para querer cutucar onça com vara curta), houve uma (na verdade, várias) do namorado da minha prima, que dizia: “FULANA, vá servir seu futuro marido, vá. Prepare ali o meu café da manhã, vá treinando”. Ela, sem graça, respondia um “hehehe, deixe de ser ridículo, oxe, vá lá”. E ele ria e olhava para mim de relance, enquanto eu passava meu filtro solar com ares de quem nem estava ouvindo (a onça cutucada com a vara curta poupando o bote). “Vá, FULANA, faça seu papel de mulher direitinho. Hehehe” e soltou aquele “Bella deve tá puta aqui… Hehehehe”. E, não, eu não me mexi, mas FULANA, sim, e foi preparar a comida dele, porque a mãe e a avó dela estavam de lado dizendo: “vai, FULANA, prepara logo a comida do moço”. Na véspera eu soube que eles haviam brigado porque o cidadão, bêbado, queria voltar dirigindo depois de uma festa à noite e FULANA não deixou. Ele se sentiu tão humilhado porque a namorada tomou a condução do carro, que preferiu voltar a pés (HAHAHAHAHAHA). Passou horas “de mal” com ela no outro dia, abusado, nem foram à praia. “Orgulho de homem”, justificava minha tia. Mas orgulho de mulher qual é, né, afinal?

Eu só respondia “humrum”, durante a mesma caminhada em que a tia me contava a história e comentava como era estranho uma outra moça com quem cruzamos na praia usar um biquíni fio-dental. “Ela não tem corpo, devia usar outra coisa”, criticava aqui. E elogiava ali a namorada do meu primo: “SICRANA, sim, tem corpo e poderia usar um fio dental ou o que quisesse, mas prefere ser elegante e usar o biquíni mais composto. Gosto muito de SICRANA, aprovo muito o namoro dela com meu filho, ela é muito discreta, não gosta de muita farra, se veste na medida, sem mostrar demais…”. E eu até “fui na onda” e elogiei o estilo de SICRANA (porque a moça é linda mesmo e estilosa mesmo, fora dos padrões da mídia) e emendei criticando a moda que minha irmã e minha prima usam, que usa decotão, barriga de fora e comprimento curto ao mesmo tempo. Que merda. Aprendemos que não pode, né? Aprendemos que é over. *suspiro*. E eu só queria falar mal do sistema que manda todo mundo se vestir igual, ter cabelo igual… Pluft. Cai na armadilha. Virei juíza e já tava ali criticando as pessoas que se vestem como querem. Sofri.

E voltamos para casa para o dominó. E formou-se um jogo que eram meninas contra meninos (oh, jura?!). E as meninas ganharam. E todos comentavam e comemoravam (surpresos?) com exaltação maior: “Essas meninas são porretas mesmo! Ganharam dos meninos!”. Enquantos todos sorriam felizes achando o máximo esse nosso mísero “orgulho da mulher”, eu só me pegava pensando que, se fossem os meninos que tivessem ganhado, tudo corria normalmente, partia-se para a próxima jogada, nada demais acontecia, além do esperado. Aquele nosso jogo de dominó de todos os dias, em que os homens estão sempre ali, na expectativa constante de serem os vencedores. Seguimos mantendo as posições. Quem sabe para ter aquele gostinho de vitória que nos dão, vez ou outra, apesar das condições desfavorecerem, quando rola um evento em que ganhamos. Nos ensinaram a nos contentarmos com pouco. Eu sigo “embaralhando” as pedras.